– Série – ALICE (A Presidenta)

EPISÓDIO 1

ANO DE 2026

Acendo um cigarro e vejo-a depois de me ter dado mais uma chapada. Estou a dias de poder ser eleita presidente deste país…

           
As ripas de luz entram por entre as brechas da janela que ainda tem o estore corrido até meio. Alice pousa a caneta na cómoda que tem ao lado da cama depois de fechar o bloco de notas. Continua a fumar enquanto embrulha o corpo no lençol para tapar a nudez de uma noite atribulada.
            – Não tens vergonha? – pergunta Joana, sua companheira, ao vir de um duche rápido ainda com a toalha enrolada.
          – Continuas a tratar-me como uma puta. Sou tua mulher. Não tenho forças para mais nada.
          Joana caminha calmamente até perto de Alice. Encosta a cara na dela e a mão junto ao pescoço.
          – Estás comigo. E é comigo que vais vencer estas eleições. É a única coisa que tens de fazer… fora isso… vales zero.
          O olhar frio de uma e o olhar profundamente vazio de outra cruzam-se por entre intensidades desmedidas. Não se desviam e estão quase lábios nos lábios numa transpiração que ofusca o raiar do dia lá fora. O cigarro está no fim e sem que dê a última fumada, Alice estica o braço e apaga-o na parede de costas para a cama.
          – Ok. – termina com desprezo depois de um bafo leve na boca de Joana.
         O país está na miséria. As pessoas voltaram para o campo e o interior de Portugal está mais vivo do que nunca. As principais cidades acumulam resíduos incalculáveis e a maioria das praias estão interditas por causa da toxidade das águas. Muitas zonas verdes foram destruídas para a construção de empreendimentos de luxo e as classes sociais dissipam-se num fosso gigantesco. Nas ruas, intensificam-se os crimes, os homicídios e os atentados terroristas de crime organizacional. O primeiro-ministro já não tem funções de formar governo e coopera ativamente ao lado do Presidente da República. Deputados só 10 de cada partido. A censura voltou a surgir em alguns meios de comunicação social e as doutrinas religiosas são uma realidade cada vez mais presente. A Europa está em decadência e as tensões entre nações crescem a passos largos de uma guerra sem precedentes.
            É domingo e o Presidente fala a todos os portugueses sempre pela mesma hora. É homem. Tem 50 anos. Conservador e um pleno ativista de uma economia fervorosa em nome do trabalho escravo da população.

            Há por aí uma mulherzinha que me quer tirar o lugar. É prostituta, está envolvida em escândalos de menores e ainda por cima é mulher. Desde quando é que pode estar à frente desta poderosa nação que é Portugal? Há só uma raça que manda. Nós. Brancos e homens. A mulher rica e fina saiu da casa dos pais porque não seguiu as pegadas da mãe trabalhadora e cuidadora do lar. Essas mulherzinhas que infetam a nossa classe política deviam estar mortas. Por isso, pensem muito bem que futuro querem para este vosso Portugal.

            A televisão desliga-se e o comando voa contra a parede. Alice está fechada no escritório sozinha. Esfrega as mãos na cara e passa-as severamente pelos cabelos. É uma mulher jovem, no alto dos seus 42 anos, é loira de cabelos ondulados, veste-se bem e… finge. Finge porque tem de ser. Finge uma personalidade escondida na prisão de uma dura amargura. Finge ser mais homem para ser mulher. Entretanto, batem à porta. É Fernanda, assistente de agenda. Já trabalha nisto há muitos anos e já muita coisa lhe passou pelos olhos. É antiga, mas soube reinventar-se. Senta-se de frente para Alice. É uma amiga, acima de tudo, e conhece-a como ninguém.
           – Tenho 60 anos, escusas de me enganar.
           – Dói. E dói aqui, cá dentro. – Alice aconchega o peito. – Não sei se sou capaz de fazer isto. Luto há 5 anos e parece uma vida inteira…
           – Somos mulheres… respondi-te?
           – O país mudou muito. Temos um território violento, um governo desprezível… e a economia vale mais do que qualquer vida… Eu não sei se vou sair agora daqui e levar uma facada só porque sim.
           – Hoje temos uma reunião com os responsáveis da campanha. Faltam 5 dias.
           – Não sei se quero…
           – A Joana andou a meter-te coisas na cabeça outra vez?
           – É a minha realidade. E não me apetece dar aos portugueses uma presidente fraca de espírito.
           – Tu és o que nós precisamos… e o país precisa de ti.
           As lágrimas de Alice confundem-se com o tempo soalheiro que faz na rua. Fernanda tenta acolhê-la nos braços, mas a mágoa é dura de suportar para uma mulher vítima dos abusos do pai quando nova e das bebedeiras violentas da mãe. Foi deixada ao abandono nas ruas de Lisboa e encontrada por uma mulher sem-abrigo que a educou como pôde até serem acolhidas pela ação social. Viveram as duas num sacrifício tenebroso e, hoje, Alice quer mostrar à sua única estrela no céu de que é capaz de ser o que quiser e que chegou ali com pulso firme.
            Os debates começaram. São 10 candidatos de todos os partidos. 1 única mulher. As sondagens são dispares e apontam para uma vitória clara do Partido União, que esteve no poder estes últimos 5 anos. As pessoas mobilizam-se para uma divisão imponente entre o lado mais extremo e o mais democrático. Alice candidatou-se como independente. Não larga a sua equipa de 3 pessoas e a sua vontade de se fazer ouvir. Está determinada, fala bem, é ouvida e todos param para a ver discursar. 5 dias depois, os dois últimos candidatos disputam a 2ª volta… Partido União e Alice.

EPISÓDIO 2

           Chamo-me Alice de Noronha e, hoje, é o meu primeiro dia como Presidente da República de Portugal. Estou nervosa. Estão 27ºC e eu continuo sempre com frio.

           
Olha-se ao espelho sentada e deixa cair algumas lágrimas que pingam lentamente nas calças que acabara de vestir. O reflexo no vidro mostra alguns hematomas severos pelos braços e outros tantos na barriga. Maquilha-se para que nada se veja. Enche-se de base, pós e pinturas sóbrias para que o ar jovial sobressaia por entre o vazio escuro dos seus olhos. Acaba de se vestir. Uma camisa e um blazer preto com a bandeira de Portugal pregada na lapela. Dá um último gole no segundo copo de vinho logo pela manhã e treina o sorriso, a postura e o andar para que possa ser o mais profissional possível. Tem de estar contente, sempre.
            O evento começa à hora marcada. 10 da manhã. A apresentação oficial da presidente eleita pelos portugueses com 55% dos votos. São quase 200 pessoas sentadas e um pequeno palco com microfone para os discursos oficiais. As bandeiras estão espalhadas pelo espaço, mostrando a portugalidade em todo o seu esplendor. Há quem ali trabalhe que não goste da decisão, mas que tenta marcar a sua presença por entre os pingos da infidelidade.
            Ouve-se o hino. Todos de pé com a mão junto ao coração e os secretários de estado perfilados na dianteira para dar o exemplo. Joana está sentada ao lado da esposa para que possa assumir o cargo de primeira dama e, com isso, funções extra para a carteira profissional. 1 hora de apresentações e chega a vez de Alice subir ao púlpito para se dar a conhecer.
            – Obrigada por terem vindo. É um gosto ter-vos aqui comigo para que juntos possamos trazer de volta a confiança dos portugueses, a democracia das palavras e a atitude nos desafios que realmente importam… acabar com a criminalidade, com o terrorismo e fazer de todas as mulheres e de todos os homens a grandiosidade desta nação. – diz de sorriso no rosto.
            A plateia aplaude com serenidade e Alice continua a reforçar os bons valores morais que se perderam e a luta a favor das causas ambientais, sendo estes os seus principais focos. A festa continua depois de também Joana ter deixado umas palavras aos presentes, afirmando assumir uma posição de vanguarda nas relações e acordos de paz entre as instituições. Quem também não faltou foi Carlos, o primeiro-ministro, que aproveitou para dar umas palavras em privado, deslocado das mesas de comidas, à presidente eleita.
            – Temos uma longa caminhada pela frente. – começa por dizer Carlos.
            – Se acha que cedo a chantagens está muito enganado. A partir de hoje será à minha maneira.
            – Uma mulher no comando será sempre fraca quando tem um homem tão bom e valorizado à frente de um governo forte e coeso.
           – Sou demasiado mulher para me deixar afetar.
           – Convenhamos que uma lésbica alcoólica não recusa uma boa noite de sexo, ainda por cima comigo. Seria excitante ver uma presidente ser submissa ao seu 1º ministro. O que acha?
           – Atreva-se a pisar o meu caminho, serei eu mesma a fazer justiça. Com licença.
           Carlos ferve e não desvia o olhar compenetrado.
           A noite vem devagar, sem fazer muito barulho. O Palácio de Belém serviu de residência oficial ao último presidente. Alice ocupa-o agora. Joana faz as honras ao servir-se de um licor no salão principal. É acolhedor. O outono vem chegando a passos largos, o frio já se faz sentir por entre as paredes do edifício. Alice está sozinha no quarto. Já bebeu duas garrafas de vinho e manda a terceira para o chão. Não tirou a maquilhagem e ainda não parou de chorar frente ao espelho. Está despida. Toca-se. Passa as mãos pelas marcas vermelhas que tem na pele e deixa-se cair no chão. Entretanto, uma das empregadas bate à porta para entrar, mas Alice grita e usa uma das garrafas de vidro para partir na parede e mandá-la embora. Joana ouve tudo. Pousa o livro que estava a ler e sobe rapidamente para ver o que se passa.
           – És capaz de te comportar como uma mulherzinha?
           – Sai. – diz Alice ao levantar-se para se voltar a sentar de frente para o reflexo.
           Silêncio. Nem uma vírgula. Joana senta-se na cama atrás da companheira.
           – O que é que eu faço contigo?
           – Que me deixes morrer…
           – Para lançares o caos outra vez? Acabaste de ser eleita presidente deste país.
           – Traz-me mais uma garrafa de vinho. Não consigo pensar. – Alice deixa cair a cabeça sobre o ombro.
           – És carne fraca… muito fraca. – Joana aproxima-se. – Entregas-te a mim sem me dares permissão… que tipo de mulher és tu? – diz, passando as mãos pelo corpo da esposa numa tentativa de a satisfazer.
           – Para…
           – Paro? Então? Já te esqueceste de quem manda?
           Alice tenta evitar que aquilo continue, mas sem sucesso. A companheira agarra-a sem pudor e tenta aproveitar a sua fragilidade para a despir por completo. Alice esperneia. Joana, com esforço, esbofeteia-a para que fique imobilizada. O sangue toma conta dos lençóis, enquanto Alice permanece desmaiada. A porta é trancada, as luzes desligadas e Joana toma conta da ocorrência, usando tudo o que sabe para se satisfazer como pode. A violência do ato é carnal e apaixonante. Ouve-se de volta um suspiro angustiante. Alice voltou a acordar e rápido é adormecida com mais uns quantos murros na cara. O resto da casa permanece em silêncio. Uma das empregadas, Lúcia, comenta, sentada no sofá do salão com a mão agarrada ao terço que tem ao peito… “Deus guarde a senhora presidenta…”.

EPISÓDIO 3

Hoje sinto-me particularmente poderosa. É o meu primeiro dia de trabalho e estou sentada na cadeira da minha secretária no escritório presidencial.

           
Fecha o bloco de notas e manda entrar Fernanda, sua assistente pessoal.
            – Quero reunir-me hoje às 3 da tarde o senhor primeiro-ministro.
            – E o relatório de contas?
            – Podes trazer assim que esteja pronto.
            – Tenho à espera o senhor ministro das finanças. Posso mandar entrar?
            – Sim.
            Alice recebe-o com delicadeza, cumprimentando-o com um aperto de mão. Sentam-se numa mesa à parte para estarem mais à vontade com os documentos.
            – Aqui tem. Os números reais destes últimos 5 anos. – Jorge dispõe os papéis sobre a mesa.
            – 30% dos portugueses no limiar da pobreza. É um absurdo.
            – Isso é relativo. Veja a nossa economia que teve um crescimento de 3% ao ano, a taxa de desemprego nos 5% e imensas novas empresas que foram construídas em zonas verdes que deixaram de ser uma preocupação de risco de incêndio.
            – Tenho 3 milhões de portugueses a passar fome, uma criminalidade que aumenta 4% ao mês nas principais cidades e está a fazer-me ver que no fundo a economia ultrapassa a miséria que está o país?
            – Estou a fazê-la ver, senhora presidente, que temos as finanças em dia e somos o país que mais cresceu na Zona Euro.
            – Portanto a solução é deixarmos tudo como está? Nada se resolve, tudo corre sobre rodas…
            – Temos um 1º ministro competente que não deixará este país cair ainda mais.
            – Já caiu, senhor ministro. E caiu por causa de um bando de homens machistas e hipócritas que se lavavam em dinheiro, começando por si. Agora há uma mulher. Mulher essa que está disposta a tudo para ver este governo cair.
            – Pense muito bem naquilo que está a fazer, porque…
            – Já pensei, pode sair.
           – Muito bem… espero que não se arrependa. Com licença.
            Jorge abandona o escritório em pólvora viva, sem dirigir uma única palavra a ninguém. Fernanda entra, de seguida, dizendo que a reunião com o primeiro-ministro está marcada para durante a tarde no Palácio de São Bento.
           Alice acende um cigarro depois de colocar um disco de vinil a tocar no leitor de discos antigo que tinha por cima de um aparador ali por perto. Escolhe “Kind of Blue”, de Miles Davis. Senta-se e ouve. Aprecia. Olha para o jardim através dos janelões do escritório e pensa. O poder cresce nas suas atitudes. Está maravilhosamente bem vestida. Não vacilou em nenhum único aspeto. Há uma personalidade a manter e os portugueses esperam o melhor da sua nova “presidenta”, como já muitos a chamam. Depositam nela toda a confiança na recuperação de um país entregue ao abandono.
            Fumo. Alice apaga mais um cigarro no cinzeiro do carro presidencial. Blindado e inspirado na grande besta de um outro em terras americanas. Sai. Tem à sua espera Carlos, o primeiro-ministro, que a recebe com um sorriso pouco evidente. Entram e dirigem-se até à sala de reuniões ondem ficam sozinhos.
            – Nunca nenhuma outra mulher me tinha caído assim aos pés.
            – Sou presidente deste país, agradeço ser tratada como tal.
            – A que se deve esta reunião?
            – Para o destituir e marcar eleições para um novo governo. – diz Alice com frieza, relembrando-o que a moção de censura está, agora, nas mãos do presidente e não da assembleia da república.
            – Não aguenta ser ultrapassada?
            – Aguento mais ver gente como vocês saírem humilhados pela porta onde entraram honrados. Não merecem o chão que pisam neste país.
            – Ui, tão maléfica que está, senhora presidenta.
            – Pode continuar a fazer teatros e malabarismos com as palavras. Prepare as suas coisas e mantenha-se atento, porque ainda hoje anuncio o seu fim.
            – Quer beber alguma coisa? – Carlos levanta-se. – Acho que os portugueses iam ficar demasiado irritados se soubessem que a Alice tem um passado obscuro ligado, digamos… às drogas?
            – Com licença, senhor ministro. Fique bem. – Alice levanta-se, sem direito de resposta e abandona o local sem muitas explicações. Os jornalistas tentam perceber o que se passou, mas sem sucesso.
            O mote está dado. As principais notícias dos canais de televisão abrem com um “Última Hora” em letras garrafais. “A presidente da república discursa dentro de minutos. Já se pode, no entanto, antever que o governo de Carlos Trindade tem os dias contados.”. Ninguém tira os olhos dos ecrãs, incluindo Joana, que surge de cara trancada no salão principal do palácio presidencial.
            – Quer tomar alguma coisa? – pergunta uma das empregadas.
            – Quero que saia daqui e que ninguém me incomode.
            – Com certeza.
            Alice sai vitoriosa da sala de conferência de imprensa, sendo rodeada por centenas de jornalistas antes que consiga sair por definitivo. Os seguranças tentam despachar o aglomerado de pessoas e Fernanda, do lado de fora, espera-a para lhe dar umas palavras finais sobre as próximas reuniões.
            – Quero ir descansar e beber um bom copo de vinho.
            – Sabes qual é a minha posição, certo?
            – Sei muito bem Fernanda. E agradeço que me deixes ser feliz como quiser.

EPISÓDIO 4       

            Sinto-me maldisposta. Estou no meu quarto depois de vomitar pela terceira vez esta manhã. O meu primeiro mês de mandato já voou e foi muito duro para mim.

            Chove. É domingo e Alice está trancada no quarto depois de ter tido um surto psicótico na noite anterior. Tudo ficou no segredo de quem viu. Joana desespera por já não saber mais o que possa fazer com a sua esposa. Lúcia, para além de empregada e de se certificar que tudo anda em normas é também governanta. É ela que, por vontade própria, decide levar o almoço a Alice.
            – Posso entrar, doutora?
            – Sim… não faça barulho. – diz Alice deitada no chão de roupa interior.
            Lúcia fica sem reação. Fecha a porta e olha em volta. Uma cama de colchão descoberto, os lençóis espalhados pelo chão, jarras partidas, garrafas de álcool por cima da cómoda e caixas de comprimidos um pouco por todo o lado.
            – Trouxe-lhe qualquer coisa para comer.
            – Comida, a toda a hora comida… isso não me traz o que perdi.
            – Posso tentar ajudá-la? Estou aqui consigo.
            Alice levanta-se com dificuldade auxiliada por Lúcia, tentando vestir-lhe um robe e sentando-a na cama. Com muito esforço lá conseguiu.
            – Sou feia, não sou? Diga-me a verdade.
            – Olho-a nos olhos e vejo que não se sente verdadeiramente aqui.
            – O que é que trouxe para comer?
            – Fiz-lhe uns bifinhos grelhados com legumes salteados. Acho que ia gostar. Trouxe-lhe um arroz doce também… para lhe animar um pouco a alma.
            – Lúcia? Conhecemo-nos há… quê? 1 mês?
            – Sim.
            – Então, ajude-me… – Alice chora. – Ajude-me a morrer. Ajude-me por favor… eu vivo neste sufoco todos os dias. Os portugueses não me merecem.
            – O que me está a pedir é injusto para si. Para todos nós.
            – Quem é a sua patroa? Vai recusar uma ordem?
            – Deixe-me ajudá-la, sim, mas de outra maneira. Confie em mim. Eu estou aqui consigo, não a abandono.
            Estão as duas frente a frente, numa cumplicidade vaga que rapidamente se adensa num olhar profundo. Abraçam-se num silêncio comprometedor. Não são necessárias palavras para o momento. Joana, por outro lado, ouviu boa parte da conversa atrás da porta. A revolta é evidente, mas fica imóvel.
           Sangue nas ruas. É a única coisa que se vê numa rotina desenfreada pelo crime. Há grupos cada vez mais perigosos a rondar as avenidas e, nem mesmo com a nova presidência, o clima se alterou. O governo está a dias de sair, sem alternativa de ser reeleito. Já se passou um mês desde que Alice tomou oficialmente o banco da presidência, mas quem ligar as televisões não pode deixar de ouvir a miséria que decorre pelo país inteiro. Milhares a viver nas ruas, outros a morrer à fome nas esquinas das ruelas, um interior cada vez mais rural, as principais cidades invadidas por organizações sanguinárias e o turismo à beira do fracasso.
           Joana entra no quarto para ver como está a companheira. Desfeita, como seria de esperar. Deitada na cama agarrada a uma pequena lâmina de um x-ato que tinha na gaveta da cómoda. Já se golpeou levemente no braço e veem-se algumas manchas de sangue no colchão.
           – Estás a fazer o que te compete? – Joana aproxima-se e olha de frente para a esposa.
           – E tu? Vieste dar-me mais um sermão, foi?
           – Tens o país em ruínas e escolhes ficar em casa.
           – É domingo, deixa-me em paz.
           – Vamos lá ver se nos entendemos. – Joana chega-se mais perto de Alice. – Eu sou a tua primeira dama e a minha imagem já está manchada o suficiente. – diz-lhe tirando-lhe lentamente a lâmina das mãos.
           – És uma treinadora de bancada. Limitas-te a passarinhar pelo que não é teu. Que tipo de mulher tenho ao meu lado? Um abutre envenenado.
           Sem que se proteja, Alice é esbofeteada com violência e o objeto cortante é encostado ao pescoço. Mais algum sangue que escorre levemente pela pele.
           – Estás… como hei de dizer… demasiado apetecível para estares sozinha.
           Joana aproveita a fragilidade da esposa para a prender com cordas à cabeceira da cama. As mãos e os pés estão sem escapatória possível. Alice vai chorando numa água salgada que se mistura no sangue dos ferimentos que tem no corpo. Não grita. Está exausta. Mesmo assim, a boca é vedada com fita cola. É despida. A outra entende que é o momento perfeito para a dominar sem perdão. Usa os lábios para a beijar nos pontos mais vulneráveis. Usa as mãos para sentir-se mais dominadora. Usa a lâmina para que a dor se sinta com prepotência. O bailado começa. Dois corpos na iminência de se entregarem no calor da frieza do ato. É uma paixão que se desliga em momento cíclicos. Joana disfruta de um corpo que lhe foi entregue sem permissão. Alice fecha o olhos e trinca os maxilares. Sofre.
           – É de vinho que gostas, não é? – diz Joana ao fazer escorrer o líquido de uma garrafa pelo corpo de Alice.
           Lúcia bate à porta. Desconfia do que se esteja a passar.
           – Vá-se embora sua cabra! Deixe-nos em paz.
           – O telefone está a tocar. Parece-me ser importante. – Lúcia mente para que consiga entrar e parar o momento. – Será da Assembleia?
           Joana levanta-se e dá um murro na porta… “Já disse para sair daqui!”.

EPISÓDIO 5

           Dois anos se passaram e nem sei o que dizer. A minha única força são os portugueses. A minha luta é um país inteiro. Hoje estou cheia de decisões para tomar.

           10 da manhã e os títulos dos jornais mostram esperança. Há um novo governo em funções que já discute o Orçamento do Estado de 2028. Alice saiu do Palácio de Belém para mais uma visita de Estado. Está acompanhada da sua equipa, sempre. Encontra-se em São Bento para uma reunião de última hora com Luís Alexandre, novo primeiro ministro. Fecham-se sozinhos numa sala nobre para falarem mais à vontade.
           – Bebida. Quer? – pergunta Luís.
           Alice treme, mas rápido desvia o olhar para os janelões.
           – Um pouco de calor, não acha? – levanta-se e abre uma das portadas.
           – Temos ar condicionado, Alice, se preferir.
           – Está ótimo assim… E obrigada pela oferta, mas eu… eu não bebo.
           – Por mim, tudo bem. – Luís senta-se logo de seguida. – Temos mais um diploma para promulgar…
           – Pena de morte?
           – Os deputados foram unânimes. É para avançar…
           Algum silêncio da outra parte. Nem um suspiro.
           – Disse alguma coisa que…
           – Não, de todo, Luís. Estava só a pensar. Tem o diploma consigo?
           Luís estica o braço para agarrar nas folhas que em na mesa atrás de si. Entrega-as nas mãos de Alice e espera que leia em linhas gerais.
           – Vou recusar.
           – Posso perguntar-lhe porquê?
           – Não posso aceitar que a violação, o abuso sexual e a pedofilia estejam abrangidos no plano de recuperação de saúde mental. A pena de morte para mim só é aceitável nestes casos. Não posso promulgar um diploma injusto.
           – Não estará a ser dura demais?
           – Doutor Luís, já vi muita coisa e não posso compactuar mais com este tipo de comportamentos abusivos. Esta é a minha luta e vou levá-la até ao fim. A minha resposta está dada, faça um novo diploma e aí falamos.
           A reunião termina sem um consenso de parte a parte. Alice despede-se com um aperto de mão e parte para um novo destino: Alentejo, onde a agricultura tem evoluído imenso e algumas fábricas fecharam para dar lugar, de novo, a terrenos verdes de produção agrícola e muitas outras fecharam, pelo país fora, para se contruírem parques de energia eólica e, assim, tornar Portugal cada vez mais um país livre de carbono e mais amigo do ambiente.
            Joana, enquanto estatuto de Primeira Dama, acompanha Alice para ser a cara das novas associações de apoio a velhos agricultores que não conseguiram estar incluídos nos planos de reforma estruturais. Muita gente tenta falar com a presidente, que vai parando para conseguir cumprimentar todos aqueles que a acarinham.
            – Gosto tanto do seu trabalho. Está a trazer de volta o nosso Portugal. – diz um dos populares.
           – Oh, minha querida Alice! Nunca desista de nós, por favor.
           – Fez muito bem em mandar aqueles corruptos embora. É assim mesmo! Uma mulher de garra.
           Por entre abraços, beijos, puxões e palavras de conforto, Alice tenta ir tapando os braços para que não se vejam os cortes e as marcas que tem no corpo. Não está fácil. Todos querem falar com ela. Gritam “Presidenta!” em alto e bom som por onde vai passando. Mais do que assumir a presidência de Portugal, é a mulher do momento. A comitiva presidencial é rápida na visita e logo regressa a Lisboa.
           Fernanda arruma umas pastas nas estantes do escritório enquanto Alice termina de responder a uns e-mails urgentes. É praticamente de noite.
           – Não sei se quero sair daqui hoje…
           – Também não tens muito por onde escolher. Vives aqui. A distância do escritório para o teu quarto é mínima.
           – Mas é uma distância, Fernanda… E na vida há momentos que basta 1 metro para te sentires livre.
           – Eu sei que debaixo dessas mangas estão cortes profundos. Eu sei que debaixo desse fato executivo estão marcas severas. Eu sei que debaixo dessa personalidade de “presidenta” está uma mulher que caminha no fio da navalha… eu sei de tudo isso…, mas não posso fazer nada. Estaria a fazer-te muito mal.
           – Ninguém pode fazer nada… Tenho de aguentar o meu mandato pelas minhas gentes. São elas a minha única razão de viver. 
           – Vetaste a pena de morte por causa da Joana?
           – Fiz mal?
           – Acho que não. Foste inteligente.
           Entretanto alguém bate à porta.
           – Uma reunião para lá das 7 da tarde e ninguém me convida? – diz Joana depois de entrar no escritório.
           – Estou na qualidade de tua patroa. Agradeço que saias. – reitera Alice.  
           – Eu também estava de saída.
           – Por favor, Fernanda, então? Fica… Não quero deixar a senhora doutora presidente desamparada. – ironiza Joana. – Até já… patroa.
         – Tenho tanto medo por ti…
         – Eu aguento. São só mais 3 anos. Depois acaba… tudo.

EPISÓDIO 6

ANO DE 2031

          Fecho a última página deste meu diário. Está feito. Passaram 5 anos desde que assumi a presidência de Portugal. Cumpri.

       
 Alice arruma a caneta e fecha o caderno onde tem escrito muito sobre a sua vida e sobre tudo o que sente, todos os dias. As novas eleições estão prestes a acontecer e ainda há muito para arrumar em Belém.
         – Chamou, doutora? – pergunta Lúcia à porta do quarto de Alice.
         – Pode entrar, à vontade.
         – Tenho tanta pena que não se tenha recandidatado. Agora que o nosso país está tão bem alinhado.
         – Há ciclos. E eu cumpri o meu. Para mim, só isso importa.
         – E vai para onde? Fazer o quê?
         – Quero que fique com este caderno. Se me acontecer alguma coisa, entregue-o aos jornais, eles saberão melhor do que ninguém o que fazer.
         – É mau perguntar o que escreveu?
         – Escrevi tudo o que sou. Quero que me lembrem como a mulher que tudo fez para salvar um povo em ruínas. Não peço muito.
         Portugal é um país ainda mais livre e os portugueses recuperaram a confiança em quem os governa. Foi um trabalho duro durante todos estes anos, sem nunca esquecer quem esteve na linha da frente para trazer de volta o espírito das três cores da bandeira. Milhares saem à rua para gritarem por um futuro ainda melhor. Querem Alice e gritam “Presidenta” pelas ruas das principais cidades do país, numa manifestação pacífica de homenagem a quem esteve sempre do lado deles.
         No escritório, Alice recebe os agentes da Polícia Judiciária e formula uma queixa contra Joana, mostrando as marcas que tem no corpo e com duas testemunhas a seu lado, Fernanda e Lúcia, que comprovam a veracidade dos factos. Os agentes registam a denúncia e rápido se dirigem ao salão principal.
         – Dona Joana?
         – Sim? O que se passa? O que é que aconteceu?
         – Não posso mais compactuar com as tuas ameaças, as tuas chapadas, os teus pontapés, os teus abusos… acabou. – diz Alice ao chegar ao salão, por último.
         – Uma vida dedicada à mulher que amo… e fazes este escândalo? Senhores agentes, por favor… em quem acreditam, não é?
         – Peço que nos acompanhe à esquadra.
         – Mas eu tenho um nome a defender. Sou primeira dama deste país… isto é um escândalo nacional. Estão a gozar com a minha cara, certo?
         – Vá lá, Joana, não compliques mais as coisas. Tenho ordem máxima para te querer ver na prisão o mais rápido possível. Colabora.
         Depois de alguma resistência, Joana cede.
         Alice prepara-se para dar conta dos discursos finais na assembleia da república e durante a tarde ruma ao Terreiro do Paço, onde contará com centenas de pessoas para a apoiar. Lúcia vai fazendo as últimas malas e Fernanda arruma os últimos papéis e documentos que estão desorganizados pelo escritório.
        “Depois da promulgação, no ano passado, pela Presidente da República Alice de Noronha, a pena de morte é decretada a Joana de Noronha pela prática de vários crimes, como violação, abuso sexual e violência doméstica.”. É esta a notícia do momento que rapidamente enche as televisões nacionais e os títulos dos jornais impressos. Nas redes sociais, há quem esteja contra e outros a favor, lançando-se o debate público mais feroz dos últimos anos.
        Os candidatos vão sendo apresentados. São quatro. Apenas 1 independente. Um homem: Olavo Barbosa, com naturalidade angolana, mas a viver em Portugal há 40 anos. Vem com a promessa de mudar o país, de lutar pelas causas mais nobres e mostrar que a cor de pele não tem de ser um problema. Vem, acima de tudo, com o objetivo de levar em frente o projeto inacabado de Alice.
         – Estou? Doutor Olavo?
         – Senhora presidente? Que bom ouvir a sua voz! Bem não estava nada à espera.
         – Pedi o número ao seu comício eleitoral. Foram uns queridos.
         – Tenho a dizer-lhe que sou um admirador nato do seu trabalho.
         – Deixe-se disso. Fiz o que me competia, apesar de contra tudo e todos.
         – Foi “A Presidenta”! Que orgulho em ser português.
         – Estou a ligar-lhe porque acredito em si e porque sei qual é o futuro.
         – Não se arrepende de nada?
         – Arrependo… de não ter sido feliz e…
         Entretanto, Lúcia interrompe a conversa, batendo à porta do escritório.
         – Olavo, desculpe… ligo-lhe mais tarde. Boa noite, com licença.
         – Trago-lhe o jantar, doutora.  
         – Chame-me Alice. Não tarda nada tem aqui consigo outra pessoa.
         – Vou ter muitas saudades de si.
         – Eu também, Lúcia… eu também…
         – Com licença, bom apeti…
         – Lúcia? O caderno?
         – Está comigo, não se preocupe. – finaliza, fechando a porta.
         Alice olha em frente, olha para os lados e vira a cadeira para os janelões que tem atrás de sim para ver a noite cair sem vergonhas. A lua está fria. Cheia, mas aparentemente vaga. Alice passa as mãos pelo corpo enquanto se despe e vai sentindo as marcas e os hematomas dolorosos. Depois dá um gole na bebida e uma garfada no arroz de ervilhas. Tira um pequeno frasco da gaveta da secretária. “Tóxico e corrosivo.” Espalha pela comida e mais umas gotas na bebida. Cruza os dedos com o frasco aberto nas mãos e… suspira. Sozinha.

FIM

(Esta série é uma obra de ficção escrita, por isso qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência).